sexta-feira, 22 de abril de 2011

Epitáfio

Então, como havia falado ontem, terminei o texto (e mudei praticamente tudo nele, haha). Postarei agora!

Epitáfio - Ricardo José

Abriu os olhos lentamente, sua cabeça girava. Sentia frio e não podia ver suas mãos com a escuridão. Com o tempo seus olhos doloridos se acostumaram com o negrume e o imundo quarto tomava forma. A ausência de cor arrepiava seu corpo. Sentia-se um intruso num mundo que jamais pensara existir e que nunca o deixara existir. Tentou se levantar, era impossível, suas mãos estavam amarradas, as cordas rasgavam seus pulsos, arranhava todo o seu corpo já dilacerado. Evitava encostar-se à parede, sentir o frio escuro daquelas paredes sujas era como ter o corpo despido, rasgado, esquecido. A solidão, ironicamente preenchia o quarto. E na tristeza da solidão lembrava-se de casa, apenas de que um dia ela existira, já não sabia as cores e não lembrava como elas eram, sua textura, de seus sabores, o preto era a única cor que seu cérebro reconhecia, já não percebia nem os cheiros, todos lhe lembravam a ausência de futuro. E, no entanto ainda era humano.

O seguinte texto foi encontrado na parede de seu quarto, ao lado de seu corpo nu espancado, manchado de sangue e, no entanto, sorrindo:

"É inegável que para vocês eu tenha cometido um crime que fere suas normas, sua lógica podre de individualidade. Comparam-me a uma aberração. Manifestam-me repulsa. Vocês me marginalizaram, excluíram-me, odiaram-me. E eu os neguei, vomitei de meu corpo cada palavra que se ligasse a seus ideais, sangrei cada nome de seus heróis assassinos fora de minhas veias.

Vocês me mantém enjaulado, privam-me de cores, sabores, sonhos, luz. Privam-me da vida e da morte. Enlouquecem-me, dilaceram-me, fazem-me definhar em seus quartos imundos longe da vida. Mas é aqui que vocês me deixam mais livre. É aqui que me afasto desta sociedade desumana, que utiliza essa razão pífia em prol da sua riqueza manchada de sangue. É aqui que me é permitido pensar sem ser bombardeado por consumo, medo, mentira e morte. É aqui que sinto meu coração bater, que vejo meu corpo envelhecer, que vejo meu tempo passar, e não sinto a necessidade de ter o que não é meu, não sinto a vontade de ser apenas eu e dominar tudo que não posso ter.

É inútil falar, meu único som é o de um silêncio desesperado. Vocês me negam as palavras, aboliram meu vocabulário, tiraram da humanidade os significados, as palavras. Tiraram o sentimento de humanidade, de pertencimento a algo maior. Inflamaram o indivíduo e apagaram a sociedade. Formaram consumidores de si mesmos, que se esgotam e precisam comprar mais suas futilidades, precisam preencher esse vazio do outro, vazio do mundo, com qualquer coisa que pareça ser sua. Compram a liberdade, mas se esquecem que o conceito de liberdade só existe porque em algum momento ela não existiu.

Vocês internalizaram o egoísmo, o horror, o sofrimento. Não me adapto a essa lógica que foi criada para matar e roubar, que aboliu os próprios sentimentos e pôs fogo em seus mártires, que estrangulou a bondade, comprou a humildade e afogou o conceito de felicidade que não seja individual. Não há lógica nessa supressão de instintos que mata e que tortura, que mente e que apaga a própria memória; nessa sociedade que tem medo de olhar para si mesma e ainda assim é narcisista, que vê ordem na arma e na força, que encontra prazer na injustiça e riqueza no roubo, que mata por temer o que há na vida.

Externizei o que havia em mim, excedi o meu corpo no que se tratou de meus sentimentos, de minhas idéias, de meus desejos. Alegrei-me e chorei pelos mesmos motivos, senti saudades, desejei a felicidade compartilhada. Quis fazer parte de um destino que não fosse apenas meu, quis fazer parte de alguém, morar em alguém.

E aqui meu discurso direciona-se para esse motivo que hoje me mata, mas que me fez viver em todos os momentos em que existiu em mim, inclusive neste último suspiro de sanidade e de vida. Motivo pelo qual nomeei estrelas com um nome que não era meu. Nome que por diversas vezes chamei em meus pensamentos. E por diversas vezes sonhei com você e quis te ter ao meu lado, segurando a minha mão, guiando-me e dizendo que tudo daria certo, que ao final seria teu. E meu corpo sorria e aceitava tuas mentiras tão certas e tão verdadeiras. E meu coração entrava em órbita de você, vagava e se perdia em você e no final lamentava-se de se encontrar tão longe de você.

Sinto agora o cheiro de tuas roupas, teu perfume, teu eu. Relembro as cores nos teus olhos, corpo e cabelo. Sinto o gosto de tua boca, de teus pensamentos, palavras, de teu corpo. Ouço a tua voz doce, clara, azul, infinita e eterna, que suspira no meu peito. Sinto o calor dos teus abraços finalmente, das palavras baixas em meus ouvidos, em minha nuca, barriga e pernas, dos arranhões em minhas costas e braços. Sinto, então, saudade de olhar teu rosto, teu sorriso.

Meu erro está riscado por todo o meu corpo, em todos os meus movimentos, nas minhas palavras, em meus pensamentos. Erro que me absorveu deste mundo, que dragou esta civilização da minha volta, que rompeu este mundo, que me liberta.

Meu erro foi amar aonde condenavam o Amor, sufocavam-no, queimavam-no, afogavam-no, mudavam seu nome, seu significado, transformando-o num mal a ser temido e abolido, destruído. Apagaram seus rastros com mentiras de felicidade, com consumo, com medo.

Contudo, espero que no fim percebam que o medo de amar é o medo de viver. Meu desejo é que todos enlouqueçamos e deixemos de ouvir esta Razão que mata sem piedade. E que desnorteados, ouçamos o coração. Que no fim de tudo tenhamos regresso na tecnologia, mas progresso na compaixão.

No meu coração nunca houve esse erro, mas uma eterna vontade de viver ao seu lado."

9 comentários:

  1. Ricardo, muitas vezes você escreveu palavras bonitas, textos lindos, e poemas inesquecíveis, porém, nesse momento sinto que esse seu texto foi uma voz no meu ouvido, contando cada palavra e declamando a sensibilidade existente nela. Você se superou apesar de sua superação ir do Extremamente Inacreditável há algo muito maior que não existe termo.
    Gosto sempre de me inspirar em você, e um dia quero aprender a ter esse dom de comover tanto com palavras e sentimentos.
    Continue escrevendo sempre, porque é de pessoas como você que o mundo precisa atualmente.
    Obrigado.

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  2. Eu consegui visualizar a cena...
    esse texto me fez sentir duas coisas, 1ª sou um merda, isso que é falar sobre sentimento, o que eu falo é balela perto disso.
    2ª isso me deu mta inspiração para escrever, pq eu tive uma idéia aproveitando o começo tão aterrorizante do texto, mas seria um conto de terror

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  3. É, os textos do Ricardo me dão uma grande inspiração! Eu fico com muita vontade de escrever, o problema é que eu não chego aos pés nem tentando.

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  4. nem eu, as vezes eu até tenho vergonha de mostrar minhas poesias pra ele, pq eu sei que nunca vou conseguir me equiparar a ele. Escrevam o que eu digo, nossos filhos e netos estudarão Ricardo na literatura

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  5. Ih, galera, sou tão bom assim não, haha.
    Vocês escrevem absurdamente bem também, na minha opinião melhor do que eu.
    Mas obrigado mesmo pelos comentários!!!
    Assim eu chego até a acreditar que sou bom em algo, rs.

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  6. Espero estuda-lo na literatura! Aliás, já estou estudando! Precisamos de pessoas como ele para trazer de volto os vinicius os toms, os fernandos, os machados. É muito importante!

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  7. Ah Ricardo! Deixa de modéstia, o texto é, arrisco em dizer, o mais foda que você já escreveu e olha que TODOS, sem exceção são fodas!

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  8. po, se tivesse uma opção de curtir nesse blog eu cutiria o primeiro comentário, depois do do ricardo, do thadeu

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  9. Eu nem sei se eu vou conseguir postar nos mesmo dias que o Ricardo, ele me faz sentir mais burro do que já sou heauiehauiehauiehuia

    Ficou foda cara, vc é meu Herói! = )

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