terça-feira, 3 de maio de 2011

Os três mal-amados

Eu não sei muito bem o que postar, e acho que vocês já devem estar de saco cheio de ler textos meus, então vou postar essa semana um trecho de um livro ('Os Três Mal-Amados') do João Cabral de Melo Neto, infelizmente ainda não li esse livro. Porém gostei muito desse texto e principalmente por tê-lo incialmente ouvido no filme "Palavra (en)Cantada" (que recomendo absurdamente a todos!). Enfim, vou postar o texto e o vídeo, porque eu acho bem legal ouvir o autor declamar seu texto, pois há certas nuances que só percebemos na voz do próprio autor, entonações, pausas, essas coisas. Aproveitem, e até semana que vem.

João Cabral de Melo Neto (texto contido na obra 'Os Três Mal-Amados')

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."



5 comentários:

  1. Cadê o vídeo, só leio o texto com o vídeo!

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  2. Desculpem-me, só fui me lembrar que não havia postado o vídeo lá pelas 11 da noite, quando já havia desligado o pc, haha.
    Já editei o post e coloquei o vídeo.

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  3. Muito irado, e tudo que tá escrito é verdade, pode confiar que essa daí é sagaz heauiehauiehaui

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  4. Eu imaginei que você fosse gostar dele, ele tem esse estilo menos romântico (nem um pouco na verdade), na verdade seria um romantismo meio realístico, que de um forma direta e 'dura' (porque todo mundo diz isso dele) fala no fundo o que é o amor.

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  5. texto, legal, sei lá achei maneiro, mas não foi algo que me deixou feliz demais da conta, mas em si a única parte que não gostei, foi o ante-penúltimo parágrafo, que acho que era algo que ele nõa precisava botar, mas fora isso adorei.

    Eu vejo esse texto em um clima frio, sem graça, causada pela ausência do amor, ou como consequência desse amor, maneiro

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